Gostei não do texto sobre arte. Chato escrever em marcha lenta.
Encerrando o assunto, dois retratos.
Neste vejo um senhor distinto mas informal, boa companhia prum gole e um papo. Meio triste, o olhar, mas inteligente, bem-humorado, talvez até um pouco malandro.
Neste o negócio é outro. Nada amigável, nada informal. Nenhum aperitivo à vista por aqui. O olhar é quase agressivo, mostra um desdém violento, como se dissesse que não se importa conosco, não importa se o vemos ou não. Como se dissesse que ele é mais importante que nós, que a nossa presença diante dele, porque ele é real e nós não. Nós estamos dentro daquele outro retrato, junto do senhorzinho distinto. Ele não. Ele existe de verdade enquanto nós somos sonhos.
Sem qualquer roupa visível que nos ajude a dizer se é rico, pobre, elegante ou vulgar, ele não faz pose nenhuma, só fica parado diante de nós em silêncio afirmando que existe e que não é qualquer um. Ele é inteligente, dá para ver. Ele viu e fez muita coisa. Ele é forte, mas também está cansado. Ele sabe que o tempo é curto, que a vida é curta, que tudo passa, e não quer saber de enrolação.
O que este retrato diz é: Olha, tá vendo? Eu sou um homem. Eu não presto. Eu sou um herói. Eu sou um artista. Tá vendo o que eu sei fazer? E você? Faz melhor? Eu tô morrendo. Você tá morrendo. Não me importa. Isto que eu fiz vai ficar, e é melhor que eu e você. Isto que eu fiz é a vida.
O primeiro é um retrato do escritor Frank McCourt, feito pelo Jason Seiler para ilustrar a notícia da morte de McCourt. É uma ilustração de primeiríssima.
O segundo é um auto-retrato de Lucien Freud. É uma obra de arte.
tanta tormenta, alegria
21 de abr. de 2011
16 de abr. de 2011
Cânone móbile
O Sétimo Selo
Esclarecendo: o Bergman não era um intelectual atormentado. Era um artista, ou o mais próximo que um diretor de cinema chegou disso. E este filme deve ser, dentre os seus melhores, o mais acessível e apaixonante. Não o melhor, mas é provável que o melhor primeiro filme a ser visto por alguém a fim de conhecer Bergman. Se você não gostar deste filme, acho que não gostará dos outros. Para mim ele é tão fundamental que lembro detalhes não só do dia em que o assiti a primeira vez, mas da época e do lugar. Lembro a sala e a tela (não mais que uma garagem e um lençol), lembro que de acordo com as legendas em espanhol a morte convidava o Max Von Sydow para jugar el ajedrez, lembro a tarde nublada e lembro a conversa idiota do casal sentado atrás de mim quando o filme acabou, ambos comentando naquele tonzinho enfastiado típico duma certa classe de imbecis que a idéia da arte como redenção era um clichê. Lembro que na época eu ainda não fumava e que fiquei andando pra cima e pra baixo esperando a hora da sessão, sem dinheiro pra mais nada além dos filmes. É, filmes, que eu não era de sair de casa pra ver um filme. Na mesma tarde vi também Morangos Silvestres e O Ovo da Serpente. Era preciso ver todos os filmes e ler todos os livros pra poder viver.
Lembro, mas aí posso estar enganado, que a bilheteira lia Silvia Plath.
Assistir a O Sétimo Selo foi quase uma cerimônia, que sacramentou definitivamente não só meu amor por Bergman, nascido saltitante, pimpão e boquiaberto, no dia em que vi Fanny e Alexander, mas também a descoberta de uma nova beleza possível nos filmes e nas coisas.
Hoje que tudo isso existe em DVD acho que é impossível pra quem não viveu aquilo ter idéia da proeza que era conseguir assistir a alguns filmes. Bergman, Kurosawa, Antonioni, Fellini, e tantos e tantos outros, como era difícil ver... com esforço e muita paciência, encontravam-se uns três ou quatro filmes de um, dois ou três de outro, em vídeo (VHS), ou se esperava que algum cineclube os exibisse. E isso porque estou lembrando os óbvios... Os raros de verdade...
Mesmo assim vi tudo que pude.
Ainda revejo esse filme, e ainda sinto uma afinidade que poucos outros me despertam.
Essa Idade Média de mentirinha, com céus frios e luzes e sombras fortes, com seus personagens modernos demais pra ser medievais (mas que exatamente por serem modernos em sua sensibilidade fazem um contraste violento e fértil com a ambientação), com sua atmosfera mambembe, e com aqueles atores! ah, Bergman e seus atores!...fala ao pirralhinho encolhido, olhos ainda arregalados de fascínio e pavor, com a intimidade de um parentesco esquisito.
Como se ele entendesse sueco.
Como se ele entendesse sueco.
Moby Dick
Fui engolido pela baleia lá por 1990. Morávamos, eu e la famiglia, numa casinha minúscula, e eu sem emprego (não que quisesse um) me dedicava à única atividade condizente com a minha natural nobreza de caráter: o ócio.
Na verdade, eram noites e mais noites de leitura ininterrupta. Depois que os pessoal deitava, com a eletrizante perspectiva do batente ao raiar do novo dia, eu assumia meu posto auto-designado na mesa de jantar que ficava na sala (não era uma sala de jantar não, nem dois ambientes, só uma casa pequena mesmo), e munido do equipamento completo indispensável às minhas viagens aventurescas (abajur, pilha de livros e um caderno), zarpava, silencioso feito rato escalando cordame de navio, que preguiçoso eu podia ser, mas sem consideração a ponto de atrapalhar o sono dos trabalhadores, não.
Nunca li tanto nem tão bem. E Moby Dick é das mais vivas dessas leituras.
O livro é um troço estranhíssimo na literatura americana da época, ou em qualquer literatura de qualquer época. Melville se inspirou em histórias reais de navios atacados por baleias (existe em português o livro do Nathaniel Philbrick, sobre o naufrágio do navio Essex) e começou pensando fazer um retrato sincero e realista do que era ser tripulante de um navio baleeiro. Tendo sido um, ele conhecia bem a profissão, e achava que o modo como fora retratada em livros até aquele momento era inexato e injusto. Isso é mais ou menos o que diz, com a voz do Ishmael, lá no comecinho, pouco antes de endoidar e começar a encher o livro de digressões filosóficas, metafísicas, religiosas, poéticas, tudo sem esquecer o realismo informativo que pretendia usar desde o início. Assim, junto às detalhadas descrições e explicações de todo e qualquer procedimento ou objeto relacionado à caça a baleias como ele a conheceu, e junto a detalhadas descrições de cada parte da anatomia de uma baleia, ele despejou baldes de reflexões sobre a natureza de Deus, sobre destino, sobre ética, sobre pecado, sobre o caráter do capitalismo, sobre a natureza essencialmente blasfema da existência humana, e etc. e etc. e bota etc. nisso. Diz (quem diz? não lembro) que ele se trancava no seu gabinete e não saía, escrevia sem parar, dias seguidos. Quando acabou tinha um livro bizarro, desconjuntado e desvairadamente bonito.
Sei que essa minha descrição faz o livro parecer um pé, mas né não, nunca, necas. Eu que não escrevi direito. O livro é mesmo tudo.
Já reli inteiro três vezes, e volta e meia, enquanto não me atiro à quarta releitura, dou um pega nalgumas páginas ao acaso. Ainda é tão misterioso e fascinante quanto na primeira leitura.
14 de abr. de 2011
Rimas ricas: robert graves
Robert Ranke Graves nasceu na Inglaterra em 1895 e morreu em Majorca em 1985. Foi poeta, romancista, tradutor, e um dos mais famosos personagens da literatura inglesa no século 20. Engraçado que no Brasil seja quase desconhecido, porque seus livros, pelos comentários que vi, continuam vendendo. Traduzi um poema curto, de novo meio de qualquer jeito.
Dead Cow Farm
An ancient saga tells us how
In the beginning the First Cow
(For nothing living yet had birth
But Elemental Cow on earth)
Began to lick cold stones and mud:
Under her warm tongue flesh and blood
Blossomed, a miracle to believe:
And so was Adam born, and Eve.
Here now is chaos once again,
Primeval mud, cold stones and rain.
Here flesh decays and blood drips red,
And the Cow's dead, the old Cow's dead.
Fazenda da Vaca Morta
Velha saga conta de que maneira
No começo veio a Vaca Primeira
(Pois nada vivo nascera afinal
Na terra, só a Vaca Primordial)
E que ao lamber a lama e a pedra fria
Do calor de sua língua fazia
Brotar carne e sangue, e incrível de ver:
Foi como fez Adão e Eva nascer.
Agora o caos outra vez se renova,
Lama primeva, pedra fria e chuva.
Aqui a carne decai, sangue correu,
E morreu, a Vaca Velha morreu.
11 de abr. de 2011
Não confunda a obra-prima do mestre picasso...
Quando falo que algum filme ou livro ou coisa que o valha não é arte, ou mesmo que cinema, fotografia e até literatura raramente o são, os dois gatos pingados que me escutam ficam com os pelos meio eriçados e soltam aqueles silvos felinos de raiva incontida.
Difícil para mim ser claro conversando. Escrevo melhor. Também não tenho paciência para explicar o que me parece óbvio. Mas, bora lá, expliquemo-nos pois, com a bênção de Ferreira Gullar, de quem vou tentar copiar a clareza.
Minha birra é com o hábito das gentes de chamar João de Astrogildo. Claro que é normal, graças a Deus, um relaxamento com a língua falada. Se todo mundo macaqueasse livros ao falar eu já teria enfiado um lápis em cada ouvido. Mas é preciso observar um mínimo de rigor, meus caros! Ora bolas! Por Júpiter! Quando as palavras são mal empregadas, as idéias são mal entendidas, e qualquer negócio parece mais esotérico do que é, se é que é.
Esse negócio é bem simples: Arte não existe. Só artista.
Arte é o que o artista faz. Qualquer artista, pintor, escritor, bailarino, qualquer um. Cada artista recria a arte em cada obra. Cada obra é tudo ou nada.
Arte, como liberdade, não é uma coisa, não dá em árvore, não está na natureza. É uma construção mental, uma ferramenta conceitual que nos ajuda a viver.
Arte é um processo de manufatura.
O produto resultante é uma obra de arte, um objeto de arte, um artefato ou o que seja. Isso é importante: falando temos o hábito de chamar o resultado do processo de arte. Não é.
Essa idéia de arte é bem próxima, se não idêntica, à idéia primitiva de arte. É a idéia segundo a qual arte é saber fazer alguma coisa bem feita, seja escrever um livro, pintar um quadro ou lavar a cabeça.
Às vezes o uso da arte resulta na criação de objetos, às vezes não. Mas em qualquer dos casos é uma construção mental e em qualquer dos casos pressupõe o saber fazer algo que dê existência física a essa construção mental.
A habilidade artesanal é indispensável à arte.
Logo, aquelas instalações e performances que vêm com resmas e calhamaços de eruditas considerações mostrando porque o palito de sorvete com o araminho enrolado em volta é arte, bom, é..., em geral né não.
E aí chegamos na segunda metade da questão. Arte é também a expressão, geralmente individual, de um sentimento ou conceito.
Mas tudo que fazemos é expressão de alguma coisa. Se mexo o braço, expresso meu desejo, consciente ou não, de fazê-lo. Posso também querer alcançar aquele copo de uísque ali na mesa, ou aquele livro na prateleira, ou estapear aquele gordinho ali, com o dedo no nariz. Posso expressar tudo isso e incontáveis outras coisas, ao levantar o braço, sem uma palavra.
Mas isso não é arte.
Num livro de filosofia encontraremos a expressão de muitas idéias, em geral muito elaboradas e enfeitadinhas, se não profundas. Mas dificilmente ele será arte. Nem é a intenção do autor que o seja, mas negócio é que não basta expressar qualquer coisa. O que se expressa é tão importante quanto a maneira como isso é feito.
É preciso que exista um equilíbrio entre o que se diz e como se diz para que exista arte.
De novo a filosofia: quase sempre é feita de muito conteúdo e pouca forma.
Enquanto a literatura é feita de muita forma e pouco conteúdo.
O que, diga-se, não torna a literatura necessariamente mais artística que a filosofia. Platão é um filósofo e John Grisham um literato. Qual dos dois é o melhor artista?
Na minha idéia, nenhuma das duas costuma ser uma manifestação de arte. A não ser no sentido em que um pneu bem trocado é uma manifestação da arte da borracharia. Tudo é feito com algum tipo de arte, sim, mas nem tudo é feito com a ambição de ser manifestação artística, e dentre o que é, pouco chega perto de conseguir.
Digamos que um objeto de arte deve ser que nem um ovo de páscoa
A confusão acontece justamente porque as pessoas se dedicam a apreciar e comentar só uma das metades. E nem lhes ocorre lembrar dos bombons...
Então, arte é o processo através do qual se manufaturam objetos que expressam conceitos.
Assim, quando eu, falando com imprecisão, digo que isso ou aquilo não é arte, quero mesmo dizer é que aquilo não consegue realizar sua necessidade de existir como objeto conceitual e artesanal.
Alguma engrenagem roda em falso, algum parafuso fica meio solto e tremelicando, fazendo barulho onde devia ter silêncio.
Por isso digo que não existe arte. Arte é um processo ininterrupto, que continua a existir e mudar enquanto o homem existe e muda. Cada artista sempre tenta alcançá-la sem conseguir. Ela é inatingível, porque a relação perfeita entre forma e conteúdo é inatingível.
Outros conceitos de arte são possíveis e existem, lógico.
Eu só acho que esse ainda é capaz de explicar melhor a bagaça toda.
Voltando à minha birra: se chamamos tudo pelo mesmo nome, é como se chamássemos um jacaré de pintassilgo porque os dois nascem de um ovo. Não existe universo em que se possa dizer que Ivan Lins, Cole Porter e Beethoven são a mesma coisa. Dos três, só Beethoven fez arte. Ivan Lins... frankly, aguiar. E Cole Porter... só digo que Deus adoraria existir para poder ouvir Cole Porter. Mas ele não fazia arte não siôr.
Ainda bem. Arte demais entoja.
10 de abr. de 2011
7 de abr. de 2011
Mencken
Tropecei num pedaço disso na internet, onde mais? e depois de procurar um tantinho, parece que consegui juntar duas ou três partes que fazem um todo coerente. Não sei se o texto é autêntico, não sei se está completo. Mesmo assim, acho que vale uma lida. Traduzi.
Diz que é a resposta a uma enquete publicada em setembro de 1930 na revista The Forum.
O Credo de Mencken
Acredito que a religião, de maneira geral, tem sido uma maldição para a humanidade – que seus modestos e grandemente superestimados serviços no campo da ética têm sido mais que sobrepujados pelo dano que ela causou ao pensamento claro e honesto.
Acredito que nenhuma descoberta de um fato, por mais trivial, possa ser totalmente inútil para a raça, e que nenhum trombetear de falsidades, por mais virtuosa sua intenção, possa ser nada além de vicioso.
Acredito que todo governo é maléfico, na medida em que todo governo deve necessariamente fazer guerra contra a liberdade, e que a forma democrática é tão ruim quanto qualquer das outras formas.
Acredito que as evidências a favor da imortalidade não são melhores que as evidências a favor da existência de bruxas, e merecem o mesmo respeito.
Acredito na completa liberdade de pensamento e expressão – igual para o mais humilde e o mais poderoso, e na mais extremada liberdade de conduta que seja consistente com a vida em sociedade.
Acredito na capacidade do homem de conquistar seu mundo, e de entender do que ele é feito, e como ele funciona.
Acredito na realidade do progresso.
Acredito – mas a coisa toda, no fim, pode ser dita bem simplesmente. Acredito que é melhor dizer a verdade que mentir. Acredito que é melhor ser livre que ser um escravo. E acredito que é melhor saber que ser ignorante.
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