tanta tormenta, alegria

16 de abr. de 2011

Cânone móbile

O Sétimo Selo

Esclarecendo: o Bergman não era um intelectual atormentado. Era um artista, ou o mais próximo que um diretor de cinema chegou disso. E este filme deve ser, dentre os seus melhores, o mais acessível e apaixonante. Não o melhor, mas é provável que o melhor primeiro filme a ser visto por alguém a fim de conhecer Bergman. Se você não gostar deste filme, acho que não gostará dos outros. Para mim ele é tão fundamental que lembro detalhes não só do dia em que o assiti a primeira vez, mas da época e do lugar. Lembro a sala e a tela (não mais que uma garagem e um lençol), lembro que de acordo com as legendas em espanhol a morte convidava o Max Von Sydow para jugar el ajedrez, lembro a tarde nublada e lembro a conversa idiota do casal sentado atrás de mim quando o filme acabou, ambos comentando naquele tonzinho enfastiado típico duma certa classe de imbecis que a idéia da arte como redenção era um clichê. Lembro que na época eu ainda não fumava e que fiquei andando pra cima e pra baixo esperando a hora da sessão, sem dinheiro pra mais nada além dos filmes. É, filmes, que eu não era de sair de casa pra ver um filme. Na mesma tarde vi também Morangos Silvestres e O Ovo da Serpente. Era preciso ver todos os filmes e ler todos os livros pra poder viver.
Lembro, mas aí posso estar enganado, que a bilheteira lia Silvia Plath.
Assistir a O Sétimo Selo foi quase uma cerimônia, que sacramentou definitivamente não só meu amor por Bergman, nascido saltitante, pimpão e boquiaberto, no dia em que vi Fanny e Alexander, mas também a descoberta de uma nova beleza possível nos filmes e nas coisas.
Hoje que tudo isso existe em DVD acho que é impossível pra quem não viveu aquilo ter idéia da proeza que era conseguir assistir a alguns filmes. Bergman, Kurosawa, Antonioni, Fellini, e tantos e tantos outros, como era difícil ver... com esforço e muita paciência, encontravam-se uns três ou quatro filmes de um, dois ou três de outro, em vídeo (VHS), ou se esperava que algum cineclube os exibisse. E isso porque estou lembrando os óbvios... Os raros de verdade...
Mesmo assim vi tudo que pude.
Ainda revejo esse filme, e ainda sinto uma afinidade que poucos outros me despertam.
Essa Idade Média de mentirinha, com céus frios e luzes e sombras fortes, com seus personagens modernos demais pra ser medievais (mas que exatamente por serem modernos em sua sensibilidade fazem um contraste violento e fértil com a ambientação), com sua atmosfera mambembe, e com aqueles atores! ah, Bergman e seus atores!...fala ao pirralhinho encolhido, olhos ainda arregalados de fascínio e pavor, com a intimidade de um parentesco esquisito.
Como se ele entendesse sueco.


Moby Dick

Fui engolido pela baleia lá por 1990. Morávamos, eu e la famiglia, numa casinha minúscula, e eu sem emprego (não que quisesse um) me dedicava à única atividade condizente com a minha natural nobreza de caráter: o ócio.
Na verdade, eram noites e mais noites de leitura ininterrupta. Depois que os pessoal deitava, com a eletrizante perspectiva do batente ao raiar do novo dia, eu assumia meu posto auto-designado na mesa de jantar que ficava na sala (não era uma sala de jantar não, nem dois ambientes, só uma casa pequena mesmo), e munido do equipamento completo indispensável às minhas viagens aventurescas (abajur, pilha de livros e um caderno), zarpava, silencioso feito rato escalando cordame de navio, que preguiçoso eu podia ser, mas sem consideração a ponto de atrapalhar o sono dos trabalhadores, não.
Nunca li tanto nem tão bem. E Moby Dick é das mais  vivas dessas leituras.
O livro é um troço estranhíssimo na literatura americana da época, ou em qualquer literatura de qualquer época. Melville se inspirou em histórias reais de navios atacados por baleias (existe em português o livro do Nathaniel Philbrick, sobre o naufrágio do navio Essex) e começou pensando fazer um retrato sincero e realista do que era ser tripulante de um navio baleeiro. Tendo sido um, ele conhecia bem a profissão, e achava que o modo como fora retratada em livros até aquele momento era inexato e injusto. Isso é mais ou menos o que diz, com a voz do Ishmael, lá no comecinho, pouco antes de endoidar e começar a encher o livro de digressões filosóficas, metafísicas, religiosas, poéticas, tudo sem esquecer o realismo informativo que pretendia usar desde o início. Assim, junto às detalhadas descrições e explicações de todo e qualquer procedimento ou objeto relacionado à caça a baleias como ele a conheceu, e junto a detalhadas descrições de cada parte da anatomia de uma baleia, ele despejou baldes de reflexões sobre a natureza de Deus, sobre destino, sobre ética, sobre pecado, sobre o caráter do capitalismo, sobre a natureza essencialmente blasfema da existência humana, e etc. e etc. e bota etc. nisso. Diz (quem diz? não lembro) que ele se trancava no seu gabinete e não saía, escrevia sem parar, dias seguidos. Quando acabou tinha um livro bizarro, desconjuntado e desvairadamente bonito.
Sei que essa minha descrição faz o livro parecer um pé, mas né não, nunca, necas. Eu que não escrevi direito. O livro é mesmo tudo.
Já reli inteiro três vezes, e volta e meia, enquanto não me atiro à quarta releitura, dou um pega nalgumas páginas ao acaso. Ainda é tão misterioso e fascinante quanto na primeira leitura.

Um comentário:

  1. Mestre Jonas,
    É sempre interessante perceber a relação que temos com determinados livros. Lendo a sua aqui descrita com o Moby Dick eu quase que me dispus a lê-lo e tratar de vez um trauma. Explico: no processo de destrinchá-lo, já lá pela metade dele (o que por si só já é uma vitória como leitora), tive uma apendicite e fui operada às pressas. Foi meu livro de cabeceira no hospital. Ele se tornou cúmplice da maior dor física que eu testemunhei na vida.Interrompi a leitura e coloquei o livro lááááá no alto da estante, bem inacessível. Mas se você gravá-lo como audiobook ou me disser que o Richard Burton leu (duvideodó) eu reconsidero...

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