tanta tormenta, alegria

11 de abr. de 2011

Não confunda a obra-prima do mestre picasso...

Quando falo que algum filme ou livro ou coisa que o valha não é arte, ou mesmo que cinema, fotografia e até literatura raramente o são, os dois gatos pingados que me escutam ficam com os pelos meio eriçados e soltam aqueles silvos felinos de raiva incontida.
Difícil para mim ser claro conversando. Escrevo melhor. Também não tenho paciência para explicar o que me parece óbvio. Mas, bora lá, expliquemo-nos pois, com a bênção de Ferreira Gullar, de quem vou tentar copiar a clareza.
Minha birra é com o hábito das gentes de chamar João de Astrogildo. Claro que é normal, graças a Deus, um relaxamento com a língua falada. Se todo mundo macaqueasse livros ao falar eu já teria enfiado um lápis em cada ouvido. Mas é preciso observar um mínimo de rigor, meus caros! Ora bolas! Por Júpiter! Quando as palavras são mal empregadas, as idéias são mal entendidas, e qualquer negócio parece mais esotérico do que é, se é que é.
Esse negócio é bem simples: Arte não existe. Só artista.
Arte é o que o artista faz. Qualquer artista, pintor, escritor, bailarino, qualquer um. Cada artista recria a arte em cada obra. Cada obra é tudo ou nada.
Arte, como liberdade, não é uma coisa, não dá em árvore, não está na natureza. É uma construção mental, uma ferramenta conceitual que nos ajuda a viver.
Arte é um processo de manufatura.
O produto resultante é uma obra de arte, um objeto de arte, um artefato ou o que seja. Isso é importante: falando temos o hábito de chamar o resultado do processo de arte. Não é.
Essa idéia de arte é bem próxima, se não idêntica, à idéia primitiva de arte. É a idéia segundo a qual arte é saber fazer alguma coisa bem feita, seja escrever um livro, pintar um quadro ou lavar a cabeça.
Às vezes o uso da arte resulta na criação de objetos, às vezes não. Mas em qualquer dos casos é uma construção mental e em qualquer dos casos pressupõe o saber fazer algo que dê existência física a essa construção mental.
A habilidade artesanal é indispensável à arte.
Logo, aquelas instalações e performances que vêm com resmas e calhamaços de eruditas considerações mostrando porque o palito de sorvete com o araminho enrolado em volta é arte, bom, é..., em geral né não.
E aí chegamos na segunda metade da questão. Arte é também a expressão, geralmente individual, de um sentimento ou conceito.
Mas tudo que fazemos é expressão de alguma coisa. Se mexo o braço, expresso meu desejo, consciente ou não, de fazê-lo. Posso também querer alcançar aquele copo de uísque ali na mesa, ou aquele livro na prateleira, ou estapear aquele gordinho ali, com o dedo no nariz. Posso expressar tudo isso e incontáveis outras coisas, ao levantar o braço, sem uma palavra.
Mas isso não é arte.
Num livro de filosofia encontraremos a expressão de muitas idéias, em geral muito elaboradas e enfeitadinhas, se não profundas. Mas dificilmente ele será arte. Nem é a intenção do autor que o seja, mas negócio é que não basta expressar qualquer coisa. O que se expressa é tão importante quanto a maneira como isso é feito.
É preciso que exista um equilíbrio entre o que se diz e como se diz para que exista arte.
De novo a filosofia: quase sempre é feita de muito conteúdo e pouca forma.
Enquanto a literatura é feita de muita forma e pouco conteúdo.
O que, diga-se, não torna a literatura necessariamente mais artística que a filosofia. Platão é um filósofo e John Grisham um literato. Qual dos dois é o melhor artista?
Na minha idéia, nenhuma das duas costuma ser uma manifestação de arte. A não ser no sentido em que um pneu bem trocado é uma manifestação da arte da borracharia. Tudo é feito com algum tipo de arte, sim, mas nem tudo é feito com a ambição de ser manifestação artística, e dentre o que é, pouco chega perto de conseguir.
Digamos que um objeto de arte deve ser que nem um ovo de páscoa
A confusão acontece justamente porque as pessoas se dedicam a apreciar e comentar só uma das metades. E nem lhes ocorre lembrar dos bombons...

Então, arte é o processo através do qual se manufaturam objetos que expressam conceitos.
Assim, quando eu, falando com imprecisão, digo que isso ou aquilo não é arte, quero mesmo dizer é que aquilo não consegue realizar sua necessidade de existir como objeto conceitual e artesanal.
Alguma engrenagem roda em falso, algum parafuso fica meio solto e tremelicando, fazendo barulho onde devia ter silêncio.
Por isso digo que não existe arte. Arte é um processo ininterrupto, que continua a existir e mudar enquanto o homem existe e muda. Cada artista sempre tenta alcançá-la sem conseguir. Ela é inatingível, porque a relação perfeita entre forma e conteúdo é inatingível.

Outros conceitos de arte são possíveis e existem, lógico.
Eu só acho que esse ainda é capaz de explicar melhor a bagaça toda.

Voltando à minha birra: se chamamos tudo pelo mesmo nome, é como se chamássemos um jacaré de pintassilgo porque os dois nascem de um ovo. Não existe universo em que se possa dizer que Ivan Lins, Cole Porter e Beethoven são a mesma coisa. Dos três, só Beethoven fez arte. Ivan Lins... frankly, aguiar. E Cole Porter... só digo que Deus adoraria existir para poder ouvir Cole Porter. Mas ele não fazia arte não siôr.
Ainda bem. Arte demais entoja.

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